A Ética e os Animais (1ª Parte)

A Ética e os Animais (1ª Parte)
Por Cristina Beckert
Etóloga, Filósofa e professora da Universidade de Lisboa
A exclusão tem sido, ao longo dos tempos, o mecanismo mais eficaz para garantir a identidade e coesão de um grupo, quer se trate de tribos, nações, raças, sexos ou espécies, ao que a ética responde com o alargamento progressivo da esfera de consideração moral, até atingir a universalidade, na esfera do humano, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem. No entanto, a racionalidade (à qual é hábito associar a linguagem, a meu ver, de forma errônea), mantém-se, ainda, como diferença específica do Homo sapiens sapiens, impedindo a ultrapassagem da última barreira ética, a saber, o preconceito especista. No entanto, o que se me afigura digno de nota, é não ser sequer a dita racionalidade o verdadeiro critério distintivo do animal humano em face dos restantes animais, mas sim algo muito mais aleatório que justifica bem melhor a qualificação do especiecismo como preconceito e que é denunciado, já no Século 17, por John Locke, em “O Ensaio sobre o Entendimento Humano”.
Vejamos o que nos diz o filósofo inglês: “[…] Penso poder estar seguro que quem quer que veja uma criatura com a sua própria forma e feitio, embora esta nunca tenha tido durante toda a sua vida mais razão do que um gato ou um papagaio, ainda lhe chamaria um Homem; ou quem quer que ouça um gato ou um papagaio falar, raciocinar e filosofar chamar-lhes-ia ou pensaria não serem mais do que um gato ou um papagaio e diriam que aquele era um Homem estúpido e irracional e este um papagaio muito inteligente e racional”.
A “forma e o feitio”, não a capacidade de raciocinar, são, pois, os verdadeiros critérios determinantes do que é humano, uma vez que um gato ou um papagaio não passam a ser homens pelo seu hipotético elevado grau de racionalidade, nem tampouco um ser humano o deixa de ser por apresentar graves deficiências mentais. Mas, suponhamos que Locke está errado e que a razão é, realmente, o traço distintivo do humano.
Não nos obrigará este critério a excluir da humanidade todos aqueles que, no dizer do filósofo, “nunca tenham tido durante toda a sua vida mais razão do que um gato ou um papagaio”? Não nos repugna tal discriminação como imoral, da mesma forma que nos repugnam todas as formas de racismo, sexismo e outras? Ora, é justamente a este tipo de exclusão que estão sujeitos milhões de seres cujo único crime é não pertencer à espécie “certa” e não apresentar um QI semelhante ao humano.
Uma ética que se queira verdadeiramente universal não pode fundar-se em fatos – ainda que não os deva ignorar – mas erigir em valor, ou seja, em objeto de consideração ética, o bem próprio de cada ser, segundo a distinção de Moore, reafirmada por Peter Singer em “A Darwinian Left”. Assim sendo, torna-se tão absurdo afirmar que alguém é ou não merecedor de consideração ética consoante à cor da sua pele, como fazer depender aquela da espécie a que pertence, pois se trata, em ambos os casos, de fatos biológicos, não de valores éticos. Perguntar- se-á, então, qual o critério que devemos utilizar para a determinação do valor ético de qualquer entidade, uma vez desmontado o preconceito especiecista responsável por todas as éticas antropocêntricas. Hesito na escolha de um único critério capaz de dar resposta a todos os casos; menciono dois que me parecem eticamente complementares: a senciência e a integridade/dignidade.
Continua...
Fonte: Eco 21 - Ano XIV - nº 97 - Dezembro - 2004 (www.eco21.com.br)
www.animaissilvestres.com
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