A Ética e os Animais (2ª Parte)

A Ética e os Animais (2ª Parte)
Por Cristina Beckert
Etóloga, Filósofa e professora da Universidade de Lisboa
....continuação
Quando Singer defende, numa linha utilitarista, que “o limite da senciência [...] é a única fronteira defensável para a preocupação pelos interesses dos outros”, está afirmando que a capacidade de sentir – prazer e dor – constitui um pré-requisito para a própria posse de interesses cuja satisfação cabe à ética garantir; ou seja, ser passível de consideração ética implica ter interesses e ter interesses implica ser capaz de sentir, o que, por seu turno, não significa apenas viver, mas lutar para preservar a vida, não apenas satisfazer as suas necessidades básicas, mas perseguir, por iniciativa própria, essa satisfação e preocupar-se em obtê-la, numa palavra, pressupõe qualquer referência a si como entidade autônoma: alguém e não somente alguma coisa. Ora, em todos os animais detentores de consciência/de si, memória, capacidade de projetar-se no futuro (primatas e mamíferos), existe alguém que sofre e que deseja deixar de sofrer, ou alguém que se sente bem e deseja prolongar esse bem-estar, evitando o malestar, o que torna eticamente condenável toda a inflicção de dor ou sofrimento que não tenha em vista um bem-estar maior para aquele a quem é infligido, sobretudo, se tivermos em conta o cariz supérfluo da maior parte dos interesses humanos em nome dos quais tal sofrimento é provocado (ex: exigências da moda, do paladar, uso de cosméticos, formas de lazer, etc.).
Se o sofrimento põe de forma inequívoca em causa a integridade/dignidade dos seres sencientes, podemos, contudo, antever alguns casos em que a diminuição da dor venha acompanhada de perda daqueles atributos. Suponhamos que um estudo etológico revela que as galinhas cegas são menos agressivas e não se mutilam entre si com a mesma freqüência do que as galinhas normais. Por sua vez, graças à engenharia genética, seria possível criar um novo tipo de galinhas cuja incapacidade visual permitiria poupar-lhes o sofrimento resultante da sua agressividade natural. Numa lógica puramente utilitarista, tal forma de manipulação genética constituiria um bem e deveria ser incentivada, ao passo que, do ponto de vista da integridade psicofísica do animal, representaria, ela mesma, uma forma de mutilação. Assim, se o sofrimento deve estar na primeira linha de combate, na protecção aos animais não-humanos, é preciso lembrar que há outras formas de atentar contra a sua integridade, de que o exemplo dado é um caso limite, mas para as quais todos nós, em maior ou menor grau, com mais ou menos consciência, contribuímos, quando cedemos à tentação de antropomorfizar os animais com quem convivemos diariamente.
Ao serem, na expressão de Tom Regan, “sujeitos-de-uma-vida”, os animais têm direito à sua própria vida e não àquela que julgamos melhor para eles, segundo os nossos próprios parâmetros, o que, no entanto, não impede, a meu ver, o benefício mútuo, sobretudo em nível afetivo, que pode advir do convívio entre humanos e outros animais. É, precisamente, esta troca e esta dádiva mútua que não são capazes de entender e de experimentar todos aqueles que põem, como motivação última para o tratamento digno dos animais, a preservação da integridade moral dos humanos, ou seja, deveres indiretos para com aqueles.
Não estamos, aqui, perante um juízo condicional, mas categórico, ou seja, não é se tratar bem os animais que não me degrado moralmente, mas, ao fazê-lo, estou, não só a respeitá- los na sua integridade, como , por acréscimo, a enriquecer a minha experiência pessoal e a alargar a minha consciência moral, o que me obriga a ter, para com os animais nãohumanos, deveres diretos. Não há, pois, que pôr em alternativa a proteção às crianças, aos deficientes ou aos animais, mas considerá-las em simultâneo, movidos pela mesma coerência com que temos vindo a alargar de modo sucessivo a esfera da consideração moral a todas as formas de alteridade não padronizadas. Esta atitude, longe de significar uma qualquer perda da identidade humana, surge, pelo contrário, como sinal da sua maturidade, pois, “como uma pessoa que continuamente se olha ao espelho, parecemos possuir uma irritante insegurança acerca da imagem que fazemos de nós próprios. Os nossos ruidosos acessos de superioridade sugerem, não que tenhamos uma verdadeira auto-confiança, mas que somos bastante inseguros. [...] Somos os membros mais recentes na família da vida – os perpétuos recém-nascidos do mundo animal. De um modo fundamental, precisamos que outras criaturas nos digam quem somos.” (Gary Kowalski, “The Souls of Animals”).
Resta-me fazer votos para que, um dia, deixemos de falar em “ética animal” ou reservemos a expressão para a parte da Etologia reservada ao estudo do comportamento ético dos animais entre si, para passar a falar tão-só em ética. Nesse momento, os objetivos deste artigo serão integralmente cumpridos.
Fonte: Eco 21 - Ano XIV - nº 97 - Dezembro - 2004 (www.eco21.com.br)
www.animaissilvestres.com
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